[Contexto] Cólera do Dragão

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por Ronaldo Silva

Eu não me lembro exatamente o ano, mas eu finalmente havia sido aprovado no exame para faixa marrom de Kung fu e a cerimônia de entrega da faixa contaria com a presença de vários praticantes, de várias regiões. A coisa toda aconteceu num CIEP na Baixada Fluminense e eu imaginava que estaria de volta em casa para o almoço. Ledo engano.

    Os outros praticantes de Hung Gar que lá estavam, eram chamados até o centro da quadra, onde recebiam instruções sobre os acontecimentos. Eles lutavam entre si, 1 contra 1, às vezes 2 contra 1 e assim por diante. Em um determinado momento, conforme o número de pessoas foi aumentando lá embaixo na quadra, a coisa virou círculo de luta. Durante um bom tempo, era 1 contra vários, uns 4 ou 5 no máximo. E eu? Já passava de meio dia e eu ainda não havia sido chamado.

    Eis que eles pararam de lutar e foram instruídos a se organizarem em duas fileiras. Acho que cada uma tinha 22 pessoas. Então eu fui chamado lá embaixo. Desci da arquibancada, apreensivo, pensando: “Caramba, esperei esse tempo todo pra isso? Vou passar no meio deles debaixo de aplausos e receber minha tão suada faixa?”

    Bom, o que começou a partir dali foi digno da extinta Sessão Kickboxer da Bandeirantes ou dos filmes do Van Damme: segundo o sádico do presidente da federação de Hung Gar do RJ, eu deveria atravessar o corredor 3 vezes. Eu deveria ir, voltar e ir de novo, mas debaixo de porrada. Isso mesmo, a missão de cada um ali nas duas fileiras era impedir o meu avanço a qualquer custo. “Fudeu” – pensei.

    Então veio um cara com um equipamento supostamente para a minha proteção: um protetor de cabeça, protetor de tórax e luvas enormes, que com certeza eram de boxe. OK, vesti o equipamento e repetia mentalmente algo como “Eu posso fazer isso, eu posso fazer isso. Eu já fiz o mais difícil que foi o exame meses atrás. Eu posso fazer isso, eu posso fazer isso.”

    Na primeira incursão, comecei com o pé direito! Não, não estou falando de sorte. Foi uma voadora no meio do peito que eu recebi do filho (também sádico) do presidente da federação. Caí feito um saco de batatas. “Fudeu muito”, pensei. Mas eu tinha que passar naquela porcaria, então eu me levantei e fui em frente. Nem a vida até hoje me deu tanta porrada como eu levei naquele dia, só na primeira ida. Um negão 2×2 no meio da fileira da esquerda, o tão falado “Paulão” entre os praticantes, me acertou um chute na altura da cabeça, mesmo eu estando com guarda levantada, que zuniu até eu atingir a idade adulta.

    Enfim, não sei como, mas consegui chegar do outro lado. A melhor definição de “moer alguém na porrada” tem uma ligação bem íntima com a minha pessoa. Restavam mais duas incursões e o equipamento que deveria me proteger, além de não proteger tanto assim, incomodava mais do que os impostos do governo em tudo o que você compra. O protetor de tórax limitava a minha mobilidade, o protetor de cabeça limitava muito o meu campo visual e as luvas acabavam de vez com o meu campo visual se eu fechasse a guarda. O dilema era: se eu fechar a guarda, fico cego e apanho por não ver de onde vem os golpes. Se eu abrir a guarda, apanho mesmo vendo de onde vem os golpes.

    Então eu liguei o foda-se e resolvi tirar o equipamento, à lá Shiryu de Dragão. Alguém da organização demonstrou preocupação e me alertou sobre o perigo de fazer aquilo, mas o sádico que comandava tudo deixou correr, provavelmente curioso pra ver o massacre ou se saía algo interessante dali. Eu parti para dentro do corredor, mais leve, com maior campo de visão e mais agressivo. Levei muita pancada, porém menos do que na primeira vez e consegui bater mais.

    A partir daí, a minha autoconfiança ficou mais forte: como se tivesse encarnado o próprio Wong Fei Hung, fui para o tudo ou nada. O filho do presidente, novamente era o meu primeiro oponente e vejam só, tentou outra voadora. No melhor estilo “um golpe não funciona duas vezes contra um cavaleiro”(AQUI É DISCÍPULO DO MESTRE ANCIÃO, CARAIO!), foi só desviar alguns centímetros e empurrá-lo ainda no ar, para vê-lo se estabacar no chão como uma jaca. Meus olhos ardiam visivelmente de fúria, pois eu havia passado uns maus bocados até conseguir realizar o exame de faixa, estava muito p@#$% da vida e principalmente, com MUITA FOME! Quase 14h e tudo que eu tinha ingerido até então foi o café da manhã às 6:30. Akuma mode on!

    Só que quando cheguei no meio do corredor, lá estava ele, o misto de Heimdall com Gandalf pra me impedir de passar. Mas vendo a determinação na minha cara e que o negócio ia ficar feio mesmo que ele me derrubasse no final, ele me deixou passar sem resistência alguma. Prossegui então no meu modo berserk até finalmente chegar do outro lado. A adrenalina me anestesiou por completo e eu só fui sentir as dores dos golpes bem depois. Aí uma colega veio amarrar a faixa na minha cintura e eu senti ter cumprido meu dever. Mas, como manda a lei de Murphy, sempre tem um problema e eu deveria ficar ali parado para ser cumprimentado por todos no local. O sádico presidente foi o primeiro. Inocentemente, estendi a mão esperando um cumprimento e eis que ele me diz: “Não, não é esse cumprimento. Pare na base.” Parei na base e ele simplesmente socou minha barriga. Ô que maravilha, a galera de apoio e os outros 44 ainda estavam na fila pra me fazer o “carinho”. Adivinhem quem foi o último? Ele mesmo, o Paulão. “É agora que eu vou morrer!” – pensei. E no melhor estilo Punho de Ferro, o cara preparou aquele soco que me faria parar direto na próxima encarnação. A minha vida passou rapidamente pelos meus olhos e a última coisa que pensei foi “porra, eu ainda nem zerei Battletoads!!”

    Então, o milagre aconteceu. Depois de eu ser moído na porrada e servido com molho de hematomas naquele Masterchef Shaolin, o cara parou o soco a poucos centímetros da minha já castigada barriga e abrindo a mão, deu um leve tapa. Então, me abraçou dizendo: “Parabéns, cara.”

    No final das contas, aquilo me ensinou algumas lições valiosas: às vezes o que parece que está ali para te proteger só piora a situação e te limita de forma absurda. E que também às vezes você precisa romper com algum protocolo se quiser ser bem sucedido ou vai ser esmagado sem dó. Ao invés de me deixar ser adaptado à situação, por meio dos equipamentos, eu optei por me adaptar à situação e assumir certos riscos, confiando no meu instinto. Acho que era isso que o Bruce Lee tinha em mente quando dizia que devemos ser como a água. Mas a mais legal de todas foi ver que a gentileza e a camaradagem podem surgir de onde você menos espera. De uma atitude “You shall not pass” para um abraço e sinceros desejos de sucesso, a sensação foi melhor do que ter atravessado aquele corredor lazarento. Melhor até do que ver o metido a besta da voadora se espatifando no chão.

Então, caríssimos e caríssimas, sejam como a água. Mas também sejam “Paulões”. O mundo agradece.

Um grande abraço e até a próxima.